Um folclore nada invisível na entrevista com Andriolli Costa

 

Atenção: se quiser, pode pular a Introdução emocional rococó - feita por este que escreve e usufrui o direito de ser o administrador deste espaço - e ir para o Vamos ao que interessa.

Introdução

Cara, sou desses que tem orgulho de ter uns conhecidos importantes. Meio besta, isso, mas fazer o quê, né?! Por exemplo, neste modesto bloguinho já passaram Afonso Benites e Marcelo Resende na receita Lives or let Die (link lá no fim).

Agora, na cara de pau mesmo, aproveito a onda da Cidade Invisível para dizer que trabalhei no mesmo ambiente do Andriolli Costa. Sério, não é folclore. Foi em Campo Grande, faz um tempaço, curtíssima temporada na redação do jornal O Estado MS – eu ainda sigo por lá depois de um ano fora. E já se vão dez anos, disso eu não sabia certinho.

Agora, Andriolli, tem currículo monstro. Dá aula, faz podcast, é professor, doutorado e uma pá de coisa. Na minha condição de leigo, considero ele como um das pessoas que mais manjam de folclore neste país tupiniquim. Tem podcast, dá entrevista (tem uma boa para o Jovem Nerd, link estará lá no finzinho do post)

Eu aqui em Campo Grande, sempre que vejo algo alusivo ao Saci marco ele, que creio perambula pelo Rio Grande, no Twitter. Geralmente são copos. Ainda bem que ele geralmente leva na boa, vê o copo meio cheio, de certo.

Vamos ao que interessa

Desde que comecei a ver a série da Netflix, idealizada pelo Carlos Saldanha, pensava em saber o que ele achou desta produção que mistura personagens do folclore com a vida real. Porém, estava receoso, até que li uma boa matéria do site Jovem Nerd em que Andriolli Costa era o especialista a abordar sobre Tutu, Corpo-Seco, Cuca, Saci, Curupira e companhia. Melhor parar por aqui, vai que você ainda vai assistir.

Daí arrisquei e mandei uma mensagem na última sexta-feira para ver se rolava umas perguntas. O resultado chegou no sábado 13. Oito indagações de um leigo para grandes respostas que vão desde a nota 7 para a série da Netflix, até saber se a súbita notoriedade do folclore nacional é boa e ruim, até te fazer saber ou lembrar que estas coisas estão mais perto do que você imagina, e dicas para quem quiser saber mais. “O folclore constrói um ambiente de pertencimento, união, superação do tempo, vitória do coletivo. Esse é o saber do povo. É o folk-lore.”

Confere aí.



Drugstore Kishô - De zero a dez, que nota daria para Cidade Invisível em termos de fidelidade aos personagens folclóricos? Por quê?

Andriolli CostaPara ficar em um número folclórico, eu diria que 7, e isso mais por culpa da trama do que de qualquer adaptação dos mitos brasileiros. A série perde muito em qualidade narrativa após os dois primeiros episódios, centrados no mistério da morte do boto, e se perde em idas e vindas arrastadas nos episódios seguintes para chegar ao climax em um final atropelado e sem emoção.

Ainda acredito que ela será um definidor do cenário - inspirando pessoas a contar suas próprias histórias sobre folclore, mostrando para o mercado que ha um público ávido por esse tipo de produção. Mas pensando nos nomes envolvidos e no que ela poderia ter sido, fiquei um pouco decepcionado.

DK – Me deu a impressão de em certos momentos estar a assistir um das cenas dos Vingadores ou X-Men. A alusão a seres mutantes ou super heróis faz sentido? Ou viajei um bocado?

AC – A cena final, para mim, é um corte enxuto de Vingadores Ultimato (e isso não é um elogio). Além da bagunça visual, há a diferença de que todos os mitos estão ali, usando seus poderes contra o antagonista que, imageticamente, está representado na pessoa pela qual o público esteve envolvido durante aquele tempo todo. E quem torceria pelo Eric? No final você quer mais é que o curupira o mate. Era isso que o diretor esperava do seu protagonista? Fico na dúvida.

DK – Se pudesse opinar sobre uma segunda temporada, que sugestão daria para a direção de Cidade Invisível?

AC – O mais lógico para a segunda temporada seria explorar outros ambientes. Quando foi anunciada pela Netflix, a série era chamada Cidades Invisíveis, no plural. Muito provável que, na ponta do lápis, perceberam que era preciso restringir os cenários e ficou o Rio como microcosmo de Brasil. Levar a trama para outras cidades é um imperativo. Em entrevista, Carlos Saldanha disse que há mais de 300 “entidades” no Brasil para eles retratarem. Duvido muito que farão isso.

A série funciona pela identificação que temos com os seres ali retratados, sendo que os mais desconhecidos as pessoas simplesmente preenchem mentalmente com os mitos que lhe são familiares. Por isso que tinha um monte de gente achando que o Tutu era o Lobisomem ou o Caipora. Ninguém pensou que ele poderia ser um mito menos famoso. Para mim, eles vão trabalhar sempre com nomes famosos (mula sem cabeça, lobisomem, etc).

DK – Acredita que de alguma forma, produções como esta pode fincar raízes no interesse da população com o folclore brasileiro? Ou caminha para ser apenas um fenômeno passageiro?

AC - Já falei um pouco disso, mas digo que sim. O que pode ser bom e ruim. As pessoas desconhecem tanto a própria cultura que é comum tomarem a ficção como verdade, e aquela se torna a forma fixa de uma narrativa que, por essência, é diversa.

Já vi um monte de gente lendo contos sobre Saci que as pessoas escrevem no instagram, com milhares de likes, e comentando o quanto ficou feliz por conhecer “a verdadeira história do saci” e que levaria isso para a escola. Ou seja, em paralelo à ficção, é importante que haja um projeto educacional para que a gente possa mergulhar nessa “caixa de areia” de ideias que é a cultura popular e brincar nela sem medo que alguém entenda errado.



Drugstore Kishô – Ainda sobre o interesse geral sobre o folclore ou a falta de, te incomoda o assunto ser lembrado apenas nessas horas? Ou vê com bons olhos este tipo de onda ou movimentação?

Andriolli Costa – Folclore sempre é lembrado pelas datas: fala-se muito em agosto, em outubro (por conta do Dia do Saci) e esporadicamente em dias menos lembrados (17/7, o dia do protetor da floresta, por exemplo, é consagrado ao curupira). Acho importante que haja esses momentos fixos e celebro também as efemérides, mas sigo num compromisso eterno de lembrar as pessoas que folclore está no cotidiano, no dia a dia, e por isso ele é tão envolvente.

Está no chá de boldo que você toma para o estômago, naquele dito popular que vem na sua cabeça sempre quando vê um dia de sol com chuva, está na sopa paraguaia que se come na sexta-feira santa no lugar da carne e, é claro, está na lembrança de que todo redemoinho carrega a semente da possibilidade da presença de um saci.

DK – O Halloween, por exemplo, ter mais cartaz no Brasil do que o Saci, outro exemplo, é sinônimo de colonização cultural? Acredita que um dia, lendas e personagens brasileiros terão reconhecimento pelo menos igual ao sucesso das crendices vindas do exterior?

AC – Hoje, claro, há uma discussão gigante sobre folclore em si ser uma ideia colonial – o que é possível se questionar já que, se entendemos que folclore atravessa todo grupo humano, basta esse grupo ter memória e transmiti-la geracionalmente para seus descendentes que estará vivendo folclore. Halloween é outra coisa, é imperialismo cultural. É cultura de massa travestida de tradição que se impõe como aquilo que é estético, cinematográfico, “legal”, devido à um arcabouço enorme de filmes e séries consumidas. Quem quiser celebrar halloween é livre para isso, claro, mas que não mascare aquilo que ele é. Infelizmente, se hoje mesmo já vemos gente assistindo Cidade Invisível dublado em inglês por que não consegue ver série em português, eu diria que não vamos melhorar muito nesse sentido.

DK – Para leigos como eu, o que recomendaria para ver e/ou ler para saber mais sobre o folclore brasileiro? Sugestões para o público infantil também são bem vindas rsss.

AC – Tem muita coisa bacana surgindo. Um exemplo bom, ainda que eu não consuma: canais do YouTube só dedicados a causos! O Canal Comédia Selvagem, com altos causos de Tiringa com sacis, caiporas e tudo mais, tem mais de 7 milhões de inscritos. Canais de exploração urbana perseguindo “lendas” com lanternas e câmeras também têm crescido bastante. São formas atuais de manter essas histórias presentes.

Do que eu gosto de consumir, recomendo a série de animação Além da Lenda da ViuCine (disponível no Canal da TV Brasil); os já clássicos filmes da série Juro que Vi (feitos pela MultiRio em 2003, 2004); os livros do Gustavo Rosseb, Felipe Castilho, Christopher Kastensmidt e Renata Ventura e, claro, as antologias de conto: Maldito Sertão, do Márcio Benjamin; Contos do Sul da Simone Saueressig e o meu Colecionador de Sacis e outros contos folclóricos, disponível em ebook na Amazon.



DK – Para encerrar, o que você responde quando perguntam: Andriolli, sério, o folclore na minha vida pode servir para o quê?

AC – Eu gosto de brincar que o folclore não nos serve, nós que servimos a ele. Hehe, e essa lógica se demonstra quando temos a dimensão de que folclore não é só mitos e lendas, mas está nos ditos populares, pratos típicos, medicina das ervas, etc. Ele não serve, mas tem função, e muitas vezes é uma função que ultrapassa os limites da prática ou da razão e vão para o nível do afeto. Talvez um omeprazol tenha cientificamente um efeito mais “eficiente” no seu estômago, mas fazer aquela receita de chá da sua avó, e sorver o líquido enquanto lembra dela, pode curar em você mais do que uma azia.

Comer aquela comida que só tinha na sua região quando se mora longe pode ser o combustível para você não largar tudo de saudade e continuar tentando. Contar uma história de homem do saco para seu filho não é só uma “mentirinha” estratégica para evitar que ele vá para longe de você quando estiver na rua; é dar continuidade a uma narrativa que atravessa os tempos – você, que ouvia, agora conta para a criança que no futuro contará para alguém.

Durante a pandemia, na Espanha, um grupo de folcloristas criou uma campanha incentivando pessoas a se gravarem cantando músicas folclóricas de suas terras. A convocação me marcou muito: “Vamos cantar essas canções que nossos avós e os avós deles cantaram. Canções que superaram a fome, a guerra, a peste. E nós superaremos também”. O folclore constrói um ambiente de pertencimento, união, superação do tempo, vitória do coletivo. Esse é o saber do povo. É o folk-lore.

Ah, os link de algumas coisas citadas nesta receita:

Lives or let die (?) - Participação do Afonso Benites e Marcelo Resende

https://drugstorekisho.blogspot.com/2020/08/lives-or-let-die.html

Quem é o Tutu, o que é o Corpo-Seco e outras questões de Cidade Invisível. Especialista em folclore, Andriolli Costa nos ajudou a responder as principais perguntas sobre a série.

 A matéria do site Jovem Nerd. https://jovemnerd.com.br/nerdbunker/quem-e-o-tutu-o-que-e-o-corpo-seco-e-outras-questoes-de-cidade-invisivel/

Dica para não desopilar

- Esses caras do Trivela fazem o melhor jornalismo de futebol do país. E veio deles este link, sobre “Mais de 800 jogadores do futebol alemão prometem apoio a colegas que quiserem se revelar homossexuais”. O link é este: https://trivela.com.br/alemanha/bundesliga/mais-de-800-jogadores-do-futebol-alemao-assinam-comunicado-de-apoio-a-atletas-homossexuais-nos-o-defenderemos/

É isso, já deu, encerro por aqui enquanto escuto a playlist KiRock pesado, no Spotify. Espero que tenham gostado.

Qualquer coisa, curte, compartilhe, diga o que achou. E, se quiser apoiar de alguma forma o Drugstore Kishô, agradeço. Também estou no twitter (@KishoShakihama), linkedin e afins.

Abraço, e se cuide. 



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